quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Longo Relato do Horror

Martin Gilbert - A Segunda Guerra Mundial [Second World War (1989)]
Livro Apreciação: 7,5 / 10
Faz 70 anos que começou a II Guerra Mundial. A efeméride tem suscitado edições de variado material alusivo. Edições e, como parece ser o caso deste livro, também reedições. Seja como for, a edição original, em inglês, é de 1989. Ou seja, saiu aquando do cinquentenário do início da Guerra.
Martin Gilbert é o autor de uma monumental biografia de Wiston Churchill. A sua área é a história política britânica do século XX. De um modo que é relativamente frequente na historiografia anglo-saxónica, tem sido, sobretudo, um biógrafo e um cronista. Neste caso dedica-se a fazer uma crónica exaustiva, que pouco mais é do que uma cronologia detalhada. É ideal para quem quiser ter uma perspectiva factual, que dê uma noção precisa de como a guerra foi evoluindo. Contudo, não fornece perspectivas de análise a nível político ou, sequer, estritamente militar. O que não quer dizer que não existam observações analíticas, só que ao sabor do desfiar factual. De modo que diríamos que é uma cronologia detalhada e comentada, sendo adequada para motivar posterior contacto com obras de maior fôlego analítico e interpretativo. Reforçando o seu valor informativo, é de notar que possui muitos mapas e algumas fotos.
Tendo assim um carácter limitado nos seus propósitos, o que confere a esta obra um interesse acrescido é salientar os factos em que os protagonistas são as vítimas dos actos mais criminosos que a humanidade conheceu. Faz desfiar uma infindável relação de barbaridades que ultrapassam o que a moral e a razão podem suportar. É certo que já se sabe, mas sempre que há oportunidade para aprofundar o conhecimento do que já se sabe, o horror é revivido de forma mais forte. Percebe-se através desta crónica que o ódio racial foi sempre o centro da ideologia nazi a ponto de ter condicionado o desenrolar da guerra. Por isto esta guerra é diferente de todas as demais. O Holocausto não foi um acidente de guerra; foi um dos grandes objectivos da guerra por parte de quem a desencadeou.
É pena que, seja devido à tradução, seja devido ao registo do próprio original, haja repetições de factos e que a sua arrumação aqui e ali deixe um pouco a desejar. Por outro lado, é evidente que é da responsabilidade de tradução, por exemplo, não converter milhas para quilómetros, o que para a generalidade dos leitores menos familiarizados com o sistema de medidas britânico se revela, no mínimo, como um desleixo antipático e incompreensível.

domingo, 15 de novembro de 2009

Memórias na História

Eric Hobsbawm - Tempos Interessantes - Uma Vida no Século XX [Interesting Times - A Twentieh-Century Life (2005)]

Livro - Apreciação: 9,0 / 10
Eric Hobsbawm é um famoso historiador, autor de A Era das Revoluções, A Era do Capital e A Era dos Extremos - tríptico que vai desde finais do século XVIII até aos tempos actuais. Outras obras suas, como Primitive Rebels (sobre a origem da Máfia) e The Jazz Scene, atestam também o seu interesse por temas originais. Além disso, escreve de forma atractiva.
Hobsbawm foi sempre comunista e ainda reivindica sê-lo, o que suscita um lastro sensacionalista nos media. É, enfim, o estranho caso do velho historiador que é comunista e inglês, ainda por cima, acrescente-se... sir. É com este estereótipo que é introduzido ao grande público. Não se esquivando, Hobbsbawm reserva nestas memórias muitas reflexões sobre a sua condição de comunista. Regra geral, a análise concreta do comunismo é correcta e em questões polémicas não se exime à postura de honestidade intelectual. Com algum pesar, é certo, reconhece que foi uma coisa medonha (nunca utiliza este termo ou algum análogo, note-se). É o que faz em relação ao estalinismo, à invasão da Hungria e à sua experiência de uma visita à União Soviética. Porém, não retira as conclusões lógicas que daí decorrem. Ou seja, reconhecendo a contra-gosto que as sociedades comunistas foram más, não toma o passo que tantos, chegando à mesma conclusão, tarde ou cedo, acabaram por tomar. Permaneceu. Mais, orgulha-se disso. Parece possuído pela obstinação (e gozo) do último dos mohicanos... Em última análise, diz que o faz por superior respeito pelo que representam os ideais da Revolução de Outubro. Porém, escusado será dizer que é criticado por muitos que entendem que, na melhor das hipóteses, o faz por pedantismo ou casmurrice. Contudo, nestas memórias há constantes provas de honestidade intelectual. Nas alusões aos ideais da Revolução de Outubro descortino incapacidade de renúncia à utopia que sustentou as grandes opções da sua vida, assim como um profundo inconformismo. Este posicionamento, mesmo em relação a uma experiência desacreditada, não é necessariamente desqualificador e pode ser útil. É óbvio que a sociedade globalizada em que vivemos tem gravíssimos problemas. Nada justifica, mesmo para os que, como eu, acreditam que este é o modelo menos mau de sociedade possível, um discurso triunfalista sobre o fim das ilusões utópicas do século XX.
Nestas memórias, Hobsbawm olha para a sua própria vida com olhos de historiador. Utiliza-a como um objecto de análise ao serviço da história. O subtítulo é, portanto, fidedigno. São cruciais os primeiros capítulos, sobre a sua infância e juventude, sucessivamente em Viena e Berlim. Nesta última cidade, ainda adolescente, faz-se comunista para sempre - não num momento e lugar qualquer, mas quando os nazis assaltam o poder, no convulsivo olho de furacão que era então Berlim. As descrições são elucidativas da dimensão do que lhe coube presenciar. A sua origem de judeu centro-europeu acabou por lhe dar a possibilidade de se mover em três culturas: judaica, germânica e inglesa. Quiseram as circunstâncias que esta última acabasse por se sobrepor. O jovem judeu errante centro-europeu, quase apátrida, tornar-se-ia um académico britânico. Mas, em certa medida, muito pouco british... As suas paixões saltam constantemente para o lado de cá da Mancha, para França, Itália e Espanha. Hobsbawm adora estes três países, sobretudo a França (é um francófilo, nostálgico da França jacobina...). A partir de experiências pessoais soltas, desenha uma síntese informal que é preciosa para compreender a evolução destas sociedades.
Em suma, a discussão sobre a reivindicação da condição de comunista não pode obscurecer a riqueza destas memórias que são um grande testemunho sobre o século XX.

sábado, 14 de novembro de 2009

México Profundo


Paquita la del Barrio - Taco Placero (2001)
CD - Apreciação: 7,5 / 10
A notoriedade de Paquita la del Barrio adveio da interpretação de temas com letras que são um discurso de imprecações anti-machistas numa tónica desbragada, às vezes parodiando com alusões de cariz sexual. É curioso, pois parece que se transfigura quando canta, sendo, fora do palco, do mais discreto e convencional. Além desta nota pícara, há uma outra não menos marcante: o estilo musical que sustenta discurso e pose, o qual oscila entre cabaret e mariachi, mas sempre em plano demodé. A maior parte dos temas com letras pícaras são da autoria de Manuel Eduardo Toscano. Supõe-se que, para além da inspiração de autor, deve haver nas tradições populares mexicanas um vasto campo inspirador para tão corrosivo "escárnio e maldizer"... Mas Paquita insere-se também numa linha mais convencional como demonstra a parte, de facto, dominante no seu repertório, que é constituída por clássicos rancheros.
Este álbum inclui dois dos mais carismáticos temas de Manuel Eduardo Toscano - Taco Placero e Rata de Dos Patas - este último é um bizarro desfiar de insultos soezes. Do mesmo autor, deve-se também mencionar Nadie Perdona el Éxito, que é uma imprecação contra os invejosos. Contudo, sem perder de vista a mais-valia da chancela de Toscano, quem é apreciador de rancheras valorizará também a interpretação de temas convencionais. É o caso do clássico Paloma Negra, interpretado com a contundência expressiva que é bem peculiar a Paquita. O culto em torno desta diva, em contra-tendência com modelos dominantes, não deve, portanto, ignorar os seus intrínsecos méritos de intérprete de rancheras.